terça-feira, 2 de março de 2021

ENTREVISTA COM A FAMÍLIA SCARPIM ROSA - revista STATTO

 


Conheça a história da família Scarpim Rosa que tiveram suas vidas transformadas com a doença de sua filha mais nova, o que os levou a mudar de país devido ao alto custo do tratamento no Brasil, recursos financeiros esgotados e quase sem saída. Mas Deus operou verdadeiros milagres nessa travessia. E hoje após três anos podem dar um impactante testemunho de fé, superação e verdadeiros milagres!

Dani, conte-nos um pouco de como era sua vida e do Júnior antes de surgirem os primeiros sinais da doença da pequena Giulianna? Trabalho, onde moravam, condição financeira e etc…

Vivíamos uma vida muito boa, relativamente tranquila – se assim pode-se dizer de quem mora numa metrópole como São Paulo!

Eu havia concluído meu mestrado em tecnologia nuclear quando recebi o convite do meu professor para continuar com o doutoramento na Áustria, por 10 meses; após esse período, retornaria ao Brasil para seguir e concluir os estudos. O Junior havia acabado de receber uma proposta de trabalho como engenheiro sênior numa multinacional com instalações estabelecidas no extremo sul da cidade (veja que cargos e títulos não possuem a significância com que relato aqui; apenas o faço para que entendam como fomos quebrados e moldados com a história relatada a seguir!).

Naquele momento, em 2011, morávamos em um confortável e novo apartamento na Lapa, frequentávamos uma igreja evangélica internacional há dois anos (a qual nunca havíamos imaginado ou planejado fazer parte!), e nossa filha mais nova tinha quatro anos. Por causa do contato mais frequente com um diferente idioma, vimos à necessidade da Giulia aprender o inglês, para que pudesse ter maior compreensão das aulas bíblicas na igreja. Também tínhamos o desejo que ela tivesse uma educação cristã; no entanto, apesar de termos uma estabilidade financeira, ainda pagávamos nosso recém-comprado imóvel; somado as contas fixas mensais, mais todos os impostos e taxas anuais do Brasil, não víamos condições de sustentar o estudo que sonhávamos para nossa filha. Foi nesse momento que o Junior, num domingo em nossa igreja, orou: “permanecer numa igreja internacional tem sido uma barreira para que a Giulia aprenda sobre Jesus e não temos condições de pagar uma educação bilíngue. Senhor se devemos continuar aqui, permita que a Giulia tenha acesso a educação que precisa, ou nos leve a outra igreja que fale o português. Meu maior interesse é que ela aprenda sobre Cristo”.

Poucas semanas depois, por meio de um membro da igreja, soube de uma vaga de professora numa escola cristã americana. Fui entrevistada e aceitei a proposta de emprego para trabalhar como professora de ciências, química e matemática naquela escola, onde todos os filhos dos funcionários estudam com bolsa integral de estudos! Nunca almejei ser professora, mas foi incrível a resposta de oração que recebemos tão clara e rápida! Ficamos atônitos com tudo o que acontecera em tão pouco tempo, sem fazermos plano algum. Sem qualquer dúvida ou tristeza, declinei a proposta de doutorado e com alegria planejávamos o início de uma nova fase em nossas vidas.

Naquele momento toda nossa rotina foi transferida para a zona sul de São Paulo, então decidimos alugar nosso apartamento na Lapa e nos mudar para uma casa (alugada) no bairro da escola onde trabalharia, já que o deslocamento diário até aquela região era muito desgastante. Nossa vida estava bem engajada e tranquila até os 4 meses de vida da nossa filha mais nova, Giulianna, quando em maio de 2013 teve uma convulsão que durou por volta de 20 minutos. Foram 20 minutos que pareciam não ter fim!

A partir de quando vocês perceberam que não se tratava de algo normal e foram investigar?

Após a primeira convulsão e uma vasta e inconclusiva investigação no hospital, Giulianna passou a ter convulsões com mais frequência: após quatro meses teve outro episódio, depois mais um após dois meses; em seguida, passou a ter uma crise por mês, evoluindo para uma convulsão por semana, e então todos os dias, até chegar a ter diversas convulsões num mesmo dia. Já não planejávamos nossos dias, pois não sabíamos se a Giulianna teria uma convulsão.

Lembro-me de uma ocasião em que a Giulianna convulsionou por uma hora, que foi o tempo do início da crise até conseguirmos chegar ao pronto socorro para que fosse medicada; ela tinha oito meses de idade. Foi aí que nos convencemos que algo estava muito errado. Naquele dia ela teve o lado esquerdo temporariamente paralisado, e realizou uma ressonância magnética do crânio, já que as tomografias, punção do líquor da espinha e eletroencefalogramas realizados anteriormente não mostravam alterações.

Com um ano de idade, ela já fazia acompanhamento assíduo com uma médica neurologista e tomava anticonvulsivantes. Até então, todos os exames de rotina eram normais; desse modo, foi temporariamente diagnosticada com epilepsia grave da infância, pois a maioria das crises estava relacionada a quadros inflamatórios comuns em crianças, como resfriados, inflamações das vias aéreas respiratórias e etc. O problema é que as convulsões eram prolongadas e de difícil controle mesmo com o uso da politerapia.

Deixamos de aceitar convites de familiares e amigos para passeios ou viagens; até a mais simples atividade fora de casa era temida. Além das convulsões durarem muito tempo, a Giulianna “apagava” após o término; ela dormia por horas, consequentemente não se alimentava bem e perdia o horário de tomar as medicações; isso afetava diretamente sua rotina, bem como a rotina de toda família.

Então a médica neurologista que investigava o caso da Giulianna solicitou um mapeamento genético, exame realizado apenas na América do Norte, porém com coleta de sangue feita num único e renomado laboratório clínico em São Paulo. Isso aconteceu aproximadamente no início de 2014; em poucos meses, já havíamos investido em exames e consultas (sem cobertura do plano de saúde) por volta de R$ 30 mil. Vendemos um carro para realizar o exame genético na Giulianna!

Lembro-me também que com muita tristeza, pedi para sair do trabalho na escola; já não conseguia me concentrar nas aulas e com muita frequência tinha que sair correndo no meio do dia para “socorrer” a Giulianna. Havia muito estresse em nosso lar, por tantas idas a emergência do hospital, internações, exames, consultas e ainda assim, não sabíamos com o que estávamos lidando e não tínhamos ideia do que seria do futuro; havia um imenso sentimento de impotência em nós, como pais. O problema é que saindo da escola, não conseguiríamos manter a Giulia estudando lá; o dinheiro que recebíamos era drenado para o tratamento da Giulianna. Para nossa surpresa, o superintendente da escola propôs reduzir minha jornada de trabalho, e manter a bolsa integral da Giulia! Que benção! Aceitamos a proposta, porém a redução das horas de trabalho refletiu na redução da remuneração. Contudo, seguimos confiantes que o Senhor cuidava de todas as coisas.

Em meio a essa vida conturbada, ainda sentíamos a responsabilidade (e o desejo!), de dar atenção, amor e momentos legais e divertidos também a nossa filha mais nova de seis anos de idade, que passou a sofrer conosco; Giulia aprendeu muito cedo na vida o que é de fato ser família: rir e chorar juntos, se divertir, dançar, brincar e também dividir tarefas e a dor com o sofrimento de um membro da família. Certamente todos nós, estávamos sendo moldados por essa situação totalmente inesperada sob a qual não tínhamos nenhum controle.

(Giulianna (7 meses) e Giulia (6 anos) – Outubro de 2013 – Zona sul de SP, SP – Brasil)

Quais os tratamentos, remédios, busca por alternativas transcorreram antes de decidirem por uma mudança de país?

Desde o início frequente das convulsões aos oito meses de idade, até os dezoito meses, quando recebemos o resultado do mapeamento genético, a Giulianna havia tentado o tratamento com seis diferentes anticonvulsivantes, com a poli terapia de até quatro medicações. Havia também um remédio para ser ministrado quando as crises se prolongavam por mais de cinco minutos. Vimos uma redução da frequência das convulsões, mas nosso desejo era que não houvesse mais crises, haja vista a quantidade de medicações que tomava.

Agosto de 2014: o teste genético revelou uma alteração rara no gene SCN1A, responsável pelas crises convulsivas e também por uma série de síndromes associadas à epilepsia, como a síndrome de Dravet. Ainda, essa mutação genética também é encontrada em pessoas com o espectro do autismo. Quando recebi a ligação da médica da Giulianna me explicando o resultado, vivi em segundos uma mistura de sentimentos: alívio, pois enfim havia uma causa e diagnóstico para a situação inexplicável de saúde dela! O fato de não saber o que causava as convulsões era angustiante! Incerteza: mas agora, o que seria do futuro?! O que significava realmente, possuir um gene mutado ou até mesmo uma síndrome?

Até hoje, essa é uma pergunta sem resposta. Não existe na literatura registros certo do futuro de pessoas com essa mutação genética, mas em sua maioria os pacientes que apresentam a mutação não têm qualidade de vida, além de não se saber ao certo a expectativa de vida. Ainda, são muitos os casos onde essas pessoas carregam desabilidades e deficiências físicas e intelectuais. Acho que até hoje me pergunto (Dani): “Como será a Giulianna no futuro? Como ela será quando adulta? Ela chegara à fase adulta?” Penso e sofro bem menos com isso, mas são questões que ainda carrego e constantemente entrego ao Senhor, pois não tenho controle sobre elas. O fardo de carregá-las é muito pesado, o melhor e deixá-las aos pés da cruz.

No entanto, o fato de termos obtido um diagnóstico e saber dentre milhares de genes, qual sofreu a mutação no momento da multiplicação celular quando a Giulianna era formada, foi incrível. Isso permitiu a médica neurologista sugerir a tentativa de um remédio específico para o tratamento das convulsões: um fármaco relativamente novo, produzido na França, distribuído somente na Europa e no Canadá, naquela época. O desafio era conseguir comprar o remédio que por meio de uma importadora, na época, cobrava R$ 3.000,00 por 60 cápsulas, que hoje corresponde a 15 dias de tratamento.

(Giulianna em uma de suas internações em São Paulo, aos 19 meses de idade (esquerda) e aguardando uma ressonância magnética do crânio aos sete anos em London, Ontário (direita)).

Agora preciso voltar um pouco no tempo para explicar como tivemos acesso a essa medicação. No ano de 2001, a igreja em que frequentávamos recebeu um grupo de missionários canadenses, e pela primeira vez, o Junior voluntariou-se para fazer a tradução para o português durante a visita daquelas pessoas. No ano seguinte o grupo retornou ao Brasil para a mesma missão, isso se repetiu pelos anos subsequentes e um missionário tornou-se nosso amigo, o qual o Junior visitava sempre que possível quando realizava viagens internacionais, a trabalho. Por esse motivo, ele tinha conhecimento da situação de saúde da Giulianna. Quando vimos pela internet que a nova medicação da Giulianna era disponibilizada para compra no Canadá, o contatamos para que verificasse custo e meios de compra: era um remédio muito caro e vendido apenas com prescrição médica local. Para nossa surpresa, o vizinho de nosso amigo canadense era um médico neurologista, o qual se ofereceu para fazer uma consulta online com a Giulianna e então passar a prescrever a medicação. Que incrível! Agora seria possível coordenar as viagens a trabalho com a ida ao Canadá para a compra do remédio que poderia dar mais qualidade de vida a pequena Giulianna! Quanta esperança!

Nesse meio tempo, também tentamos controlar as convulsões com a dieta cetogenica, uma dieta rica em gordura e extremamente reduzida em carboidrato. O alto teor de gordura no organismo leva a produção em alta concentração dos grupos cetônicos, reduzindo descargas elétricas no cérebro, responsáveis pelas convulsões. Infelizmente os efeitos colaterais da dieta cetogênica são alterações do colesterol e triglicérides, e o desenvolvimento do diabetes e doenças do fígado. Nosso investimento em consultas com médicos e nutricionistas especializados permitiu que a Giulianna iniciasse a dieta, a qual mostoru-se eficiente por três meses; após esse período, as convulsões voltaram a ser frequentes, de uma a duas por semana.  A dieta foi retirada e mantiveram-se os três anticonvulsivantes que já tomava há quase um ano.

Em dezembro de 2014 a primeira viagem ao Canadá foi realizada para compra do remédio de produção francesa e em janeiro de 2015 o tratamento foi iniciado. Foram nove meses sem convulsões e pela primeira vez, as doses das medicações começaram a ser reduzidas! Durante esse período, o Junior ja havia realizado pelo menos mais duas viagens ao Canadá para compra da medicação (porque era mais barato pagar pelas passagens do que comprar o remédio pela importadora no Brasil!), mas também nesse período a empresa multinacional onde trabalhava, passou a enfrentar problemas financeiros devido à queda brusca da economia brasileira, demitindo centenas de funcionários, inclusive o Junior.

Com a perda do emprego do Junior, ficamos vulneráveis quanto ao convênio médico de alta qualidade que tínhamos acesso, as viagens para compra da medicação, e obviamente quanto a nossa renda. Quando parecia termos o controle sobre essa difícil situação, algo acontecia para nos fazer ficar dependentes daquele que na verdade controla todas as coisas: nosso Deus!

(No campus da escola onde a Giulia estudava e eu lecionava, após a programação de Natal – dezembro de 2014 – Zona sul de SP, SP – Brasil.)

Como é importante termos amigos, parceiros, pessoas dispostas nesses momentos. Conte-nos um pouco sobre a as pessoas que foram cruciais nesses momentos e os milagres obtidos através dessas amizades e parcerias.

Certamente nossos familiares viveram muito de perto essa situação conosco. Mais especificamente os pais do Junior, minha mãe e avó sempre que possível ajudavam a cuidar das meninas, quer fosse a Giulianna nos primeiros meses de vida, ou a Giulia quando ficávamos internados com a Giulianna no hospital. Eles não ajudaram somente com o apoio moral, mas financeiro também; nossos recursos ficaram limitadíssimos nos anos de 2016 e 2017 quando mantínhamos o tratamento com a medicação de alto custo, e sofríamos com o desemprego do Junior. Foram inúmeras compras de mercado, sacolão e pagamento de exames que ambas as famílias dividiram conosco naqueles anos.

A igreja a qual servíamos teve um grande impacto em nossas vidas desde o nascimento da Giulianna. Sempre interviram com orações, visitas, doações financeiras e inúmeras vezes recebemos refeições de famílias da igreja, quando recém chegávamos de internações no hospital. Por cinco anos fomos vizinhos do pastor daquela igreja, e não sei contar quantas vezes ele e sua família nos socorreu! Inúmeras vezes receberam a Giulia em situações de emergência com a Giulianna, oravam por nós, faziam e compartilhavam suas refeições, levaram ao hospital, quanto amor recebemos também dos nossos irmãos na fé!

E havia ainda a família do nosso amigo missionário no Canadá, que sempre recebia o Junior quando ia buscar o remédio importado, além de antecipar sua compra.

Ah! E precisamos mencionar aquele oficial de imigração! Em uma de suas viagens ao Canadá para compra do remédio, já desempregado (creio que no ano de 2016), o Junior conseguiu parcelar a passagem no cartão de crédito e seguiu sem dinheiro algum, ao Canadá. Nossa conta no banco estava negativa, o cartão de crédito estourado, então, nosso amigo canadense se dispôs a comprar a medicação para que o pagássemos em algum momento no futuro. Lembro-me que o Junior ainda falou “espero que não haja nenhum atraso ou problema de conexão no voo, para que eu não fique parado em hotel ou aeroporto, pois não terei dinheiro para comprar nem mesmo uma agua”.

Era véspera de Natal, seu voo seguiu ao Canadá sem intercorrências, e indo para a fila de imigração ele pensou em dizer que estava ali a trabalho, afinal, ainda possuía os vistos válidos e seria liberado mais rapidamente dali; certamente seria bem mais simples do que explicar o motivo da compra do remédio, mostrar cartas do médico, declarações e receitas, correndo o risco de negarem sua entrada. No entanto, como explicaria qual trabalho faria no Canadá um dia antes do Natal? “Vou só dizer a verdade”, pensou o Junior. Então a agente de imigração pergunta: “O que o traz ao Canadá na véspera de Natal, senhor?”. E o Junior seguiu explicando sobre a medicação da Giulianna. Então ela pergunta: “mas esse remédio custará quanto?”; Junior responde que será algo em torno de $ 3.000.00 para uma dose de quatro meses. Ela pede um momento para o Junior, entra numa sala e volta com um cartão de crédito contendo $250.00, para ajudá-lo nas despesas dos dias que permaneceria no Canadá. Inacreditável! Que agente de imigração faz isso?! Nunca vi até esse dia! Esse é o nosso Deus!

(Após o culto de Páscoa na igreja internacional onde fomos membros por nove anos – Marco de 2016 – Zona sul de SP, SP – Brasil.)

Recursos financeiros, trabalho, tudo pode mudar de uma hora para outra. Como foram se adaptando até de fato chegarem a conclusão de que não dava mais para ficar no Brasil?

Essa mudança que você menciona nós vivemos. É incrível ver como nos moldamos às circunstâncias inesperadas da vida, pois não houve planejamento! Não planejamos perder o trabalho, não planejamos ter um filho com uma doença rara, não planejamos investir todo recurso num tratamento médico. Essa capacidade que Deus deu ao ser humano de se adaptar as situações é de fato admirável.

Nós passamos a limitar o investimento de nossa renda para nos alimentar, pagar contas básicas da casa e sustentar o tratamento médico da Giulianna; vendemos carros, um imóvel, usamos reservas financeiras.  Todo lazer foi cortado, inclusive passeios públicos como ir ao parque, pois não tínhamos como pagar a gasolina do carro ou comprar uma pipoca. Não pedíamos pizza ou saímos para restaurantes, não íamos a festas de aniversários ou casamento, pois não havia condições de gastar com presentes ou sustentar o gasto extra de combustível. Nunca reclamamos por não ter essas coisas, pelo contrário: passamos a ser extremamente gratos quando estávamos todos em casa (sem fazer nada demais!), e não no hospital.

No início de 2016, após três viagens ao Canadá para compra do remédio de alto custo, eu passei a investigar o que era necessário para que morássemos por um período naquele país, para assim ter acesso ao remédio. O Junior era mais resistente e temeroso em deixar tudo para trás, afinal, nossos estudos e carreira estavam estabelecidos no Brasil, além, obviamente, de nossos familiares e amigos. No entanto, naquele ano, começamos a dar pequenos passos, como tradução e reconhecimento de nossos diplomas; estruturamos também uma planilha de custos do investimento com vistos, moradia, comida e estudo ao chegar ao Canadá.

(Giulia (7 anos) e Giulianna (3 anos)  – Julho de 2016 – Zona sul de SP, SP – Brasil)

A conclusão de que não tínhamos como permanecer no Brasil aconteceu em julho de 2017, quando após ter participado de dois processos seletivos em renomadas empresas em São Paulo, o Junior não recebeu o convite de trabalho. Nesse momento a área da construção civil em São Paulo havia quebrado, e não havia mais trabalhos a serem realizados por meio da empresa de engenharia que tínhamos. A Giulianna continuava na dependência do remédio importado e não víamos mais a possiblidade de comprá-lo realizando as viagens ao Canadá, ou adquiri-lo pela importadora no Brasil.

Como foi o planejamento para a mudança? E quando de fato estavam prontos para partir?

O último recurso financeiro que recebemos foi com a venda (inesperada) de um lote que possuíamos, em outubro de 2017. Com o dinheiro, investimos no processo dos vistos de estudo e trabalho no Canadá e daríamos início à vida no novo país. Colocamos nossos móveis a venda e desocupamos a casa que alugávamos em dezembro daquele ano. Em janeiro de 2018 deixávamos o Brasil.

Devido à necessidade da compra do remédio da Giulianna que acabaria em fevereiro de 2018, os preparativos para mudança de país foram muito tensos. Enquanto vendíamos nossos bens, também aguardávamos os vistos, e ainda havia o lado emocional por deixar familiares, amigos, nossa pátria; tudo isso somado ao fato de não sabermos como seria o recomeço no novo país: será que conseguiríamos trabalho? As meninas se adaptariam na escola? Chegaríamos no meio de um inverno rigoroso que nunca experimentamos, enfim, inúmeras questões cercavam nossos últimos dias no Brasil. Só nos cabia continuar dando os passos de fe, confiando no cuidado de Deus.

Por causa disso, não passamos pela fase de estar prontos para sair do Brasil; nossa saída nunca foi planejada, não foi parte de um sonho ou de um objetivo familiar. Foi uma necessidade inesperada, foi tenso, incerto. Lembro-me que a Giulianna teve uma convulsão no dia 31 de dezembro de 2017 quando caminhávamos num parque de São Paulo. Que passagem de ano triste! Medo do desconhecido que ainda viria, de um novo ano que não havíamos planejado ser daquele modo. E ainda aguardando a aprovação dos vistos de estudo e trabalho, com passagens compradas para o final do mês seguinte. Então no dia 29 de janeiro de 2018 deixávamos o Brasil, nós quatro, oito malas, duas mochilas e meu violino!

Assim que chegaram onde ficaram? Tiveram apoio de amigos? Já tinham o visto correto para morar?

Durante o tratamento da Giulianna com o remédio importado e quando iniciamos a pesquisa sobre meios para mudar-se para o Canadá, nosso amigo canadense e missionário sempre esteve de perto orando conosco, apoiando e fornecendo informações valiosas sobre o país e comunidade onde vivia. Ainda, ofereceu-se para nos receber e acolher durante os primeiros meses no Canadá, caso decidíssemos pela mudança de país. Afinal, além da amizade e do amor em Cristo que nos unia, também teríamos fácil acesso ao médico neurologista da Giulianna, que era seu vizinho. Desse modo, ao saímos do Brasil, tínhamos um destino e acomodações certos.

Desde nossa chegada ao aeroporto de Toronto na província de Ontario, fomos recebidos por esse amigo e sua esposa, que nos acolheram em sua espaçosa e confortável propriedade, por cinco meses. Saber que existiam pessoas nos aguardando e dispostas a nos orientar em nosso início num novo país, foi essencial. Apesar de termos algum conhecimento do idioma inglês, da cultura norte americana e de termos feito nossa “lição de casa” com a pesquisa sobre o Canadá, não fazíamos ideia do que seria morar nesse novo lugar. Desconhecíamos leis locais, costumes, clima, hábitos alimentares, produtos no supermercado, sistema de saúde, ofertas de emprego, profissões certificadas entre outras situações que só se aprende quando se mora no lugar.

(No espaçoso quintal da propriedade onde moramos ao chegar no Canada – fevereiro de 2018 – Prince Edward County, Ontario – Canada)

Chegamos com vistos de visitante e podíamos residir no Canadá por até seis meses, mas não podíamos estudar ou trabalhar. Após dezoito dias no novo país, nossos vistos de estudo e trabalho foram aprovados e sentimos um alivio muito grande por saber que poderíamos então, dar sequência na nova vida.

Como tem sido a adaptação das meninas e de vocês já no Canadá desde que chegaram? Emprego, escola, igreja e etc…

Só posso dizer que Deus tem sido incrível em toda nossa jornada até aqui! Só hoje conseguimos entender como Ele já planejava tudo o que aconteceu conosco nos últimos dez anos; o fato de termos sido inseridos numa comunidade americana em 2009 como membros da igreja internacional e logo em seguida meu trabalho na escola cristã americana que proporcionou a educação com imersão no idioma inglês que nossas filhas tiveram acesso sem nunca termos planejado! Incrível chegar no Canadá com nossas filhas e nós também, conseguindo não só nos comunicar em inglês como também com médico para tratar da Giulianna e amigos dispostos a nos orientar. Então diria que a língua e a cultura, não foram um grande choque para nós, mas obviamente passamos a compreender muito mais de ambas as situações quando já estávamos aqui.

O clima certamente foi uma das coisas que precisamos de tempo para acostumar e compreender tudo o que mudaria em nossa rotina. Os primeiros meses foram os mais difíceis, sem amigos, familiares, tentando começar de novo em todos os sentidos: a ter os primeiros documentos, um trabalho, uma igreja, etc. Quando o desânimo ou o questionamento nos cercava, parávamos e lembrávamos o porquê estávamos ali, senão pelo tratamento da Giulianna, ou seja, não havia opção. Não saímos do Brasil só porque queríamos mais qualidade de vida; não vivíamos o sonho norte americano, mas sim, buscávamos manter a Giuliani viva. Então todo desânimo passava, e seguíamos adiante, lutando e orando para o Senhor nos conduzir em Sua direção. E foi o que Ele fez.

(Maio de 2018 – Prince Edward Country, Ontario – Canadá.)

Após cinco meses morando na casa da família canadense, fomos trabalhar num acampamento da igreja metodista livre em Bloomfield, Ontario. Moramos num trailer por dois meses e foi incrível! Pouco antes de recebermos esse convite nossa filha mais velha começou a pedir para ir a um acampamento de férias de verão, muito comum por aqui; obviamente, não tínhamos dinheiro para tal, então começamos a orar. Durante o período que moramos no acampamento, nossas duas filhas tiveram acesso à programação das crianças e tínhamos todas as tardes livres para explorar o “Camp”. Inacreditável o que nosso Deus faz!

(Trailer onde moramos quando trabalhamos no acampamento cristão, no verão de 2018 (Julho e Agosto) – Prince Edward Country, Ontario – Canada.)

(Campus do acampamento: Giulia e Giulianna (esquerda) indo para a praia de água doce (direita – West Lake) que cerca o terreno do acampamento – Prince Edward Country, Ontario – Canadá.)

Foi no final de nossa estada no acampamento que Deus nos levou para a cidade de Sarnia, Ontario, onde o Junior faria o College a partir de agosto de 2018, pois tudo o que planejamos acontecer naquele primeiro semestre não aconteceu, e o único lugar em que ele conseguiu aceitação e que tinha seu curso disponível era naquela cidade. Apenas após nossa mudança, no dia 25 de agosto de 2018, descobrimos que Sarnia possui um vale industrial petroquímico no Lago Huron, divisa com os Estados Unidos no estado de Michigan.

(Blue Water Bridge: Lago Huron que divide o solo canadense (Sarnia, Ontario) do solo americano (Port Huron, Michigan) – agosto de 2019.)

Na segunda-feira dia 28 de agosto matriculamos as meninas na escola, o Junior começou seu curso técnico e recebemos a notícia que a solicitação que o médico neurologista fez ao governo Canadense, para cobertura do remédio de alto custo da Giulianna, foi aceito e teria cobertura total! Glória a Deus! Nunca imaginávamos, que como residentes temporários no Canadá teríamos direito a ajuda do governo, que passou a cobrir não só o remédio importado, mas todas as medicações que a Giulianna precisava, consultas médicas, exames e terapias. No mês de setembro, nós quatro fomos incluídos no sistema público de saúde do Canadá, considerado o primeiro da lista de dez países, com sistemas de saúde pública mais bem desenvolvida.

(Giulia e Giulianna esperando o ônibus escolar (esquerda) e o Junior em uma de suas aulas práticas de laboratório (direita) – Ano de 2019 / 2020 – Sarnia, Ontario.)

As igrejas pelas quais passamos em Prince Edward County e em Sarnia também tiveram um impacto positivo em nossas vidas, nos acolheram e prontamente ajudaram na indicação para o aluguel de nossa casa, com doação de móveis, o preparo de refeições e até mesmo ajuda financeira. No entanto, o que fez a grande diferença foi o contato com as pessoas e o início de novas amizades.

Após dois meses em Sarnia consegui (Dani) meu primeiro emprego numa das fábricas do vale industrial; uma multinacional produtora de borracha sintética, onde fui contratada como cientista no departamento de pesquisa e desenvolvimento. Após um ano e meio fui promovida a químico do laboratório de controle de qualidade, onde permaneço até hoje, para glória do Senhor!

Como a pequena Giulianna está de saúde hoje em dia? Ela frequenta a escola, está se desenvolvendo bem? Está gostando no novo país?

Ver a Giulianna viva é sempre um lembrete que nosso Deus é um Deus de milagres. Por todo o sofrimento que já passou, especialmente em seus três primeiros anos de vida, pelas várias chances de perder a vida, pelas doses intensas de remédio que toma até hoje, pelo descobrimento da mutação genética, não podemos acreditar no acaso, mas no milagre da vida, que quem proporciona é Jesus, cremos assim! Hoje a Giulianna tem oito anos, mantem-se estável com poucas convulsões, e faz uso de três fortes medicações; ainda assim, por causa da doença em si, pode ter crises breves, de 30 segundos a 1 minuto de duração.

(Giulianna no Parque Canatara – Agosto de 2020 – Sarnia, Ontario)

A Giulianna é uma criança com crescimento físico apropriado, muito feliz, engraçada e meiga. Frequenta o segundo ano do ensino primário, mas segue conteúdo do início do primeiro ano, escreve apenas seu nome com muita dificuldade, não lê, e tem limitação na comunicação verbal (e quando o faz, prefere o inglês), apesar de observarmos um grande progresso em todas as áreas que possui deficiência, nos últimos anos. Intelectualmente, possui um atraso de três a quatro anos, aproximadamente. Não temos ideia de como será seu desenvolvimento na adolescência ou fase adulta. Com toda essa situação em nossas vidas aprendemos a viver como descrito em Mateus 6:24: “não se preocupe com o amanhã, basta a cada dia o seu próprio mal”.

Todos, de algum modo, nos ajustamos muito bem ao país, ao clima, cultura e idioma. Talvez por sabermos que retornar ao Brasil nunca foi uma opção viável dentro das necessidades medicas que vivemos. Muitas barreiras foram vencidas ao longo dos três anos em que moramos aqui, e sabemos que sempre haverá situações a serem vencidas, mas isso é real não só em outro país, não é mesmo?! A saudade dos familiares e amigos é grande, bem como o sofrimento pela perda de entes queridos e pelo tempo que não vivemos juntos.

Em contrapartida, temos vivido dias abençoados nos últimos três anos, não apenas pela estabilidade na saúde da Giulianna, mas também pela qualidade de vida que experimentamos na cidade em que moramos; ainda, a estabilidade financeira do país e consequente empregabilidade, suporte financeiro por parte do governo, novas amizades, novas oportunidades e uma nova família em Cristo, tem sido fundamentais em nossas vidas.

O Junior concluiu seu curso técnico em distribuição de energia em maio de 2020, trabalhou por seis meses como trainee na maior geradora de energia elétrica da província de Ontario; atualmente trabalha como especialista em automação e sistemas elétricos, e recentemente suas credenciais de engenheiro foram aceitas na província. Quantas vitórias, com a graça e o sustento de Deus!

A Giulia completou treze anos em julho de 2020, se formará do oitavo ano em junho de 2021, é uma irmã (e filha!), exemplar que cuida e protege a Giulianna; também se desenvolveu bastante em áreas como música e artes e está muito animada para a nova fase em sua vida acadêmica seguindo para o “High School” em setembro de 2021!

(Giulia faz 13 anos! 14 de agosto de 2020 – Sarnia, Ontario.)

Situações extremas podem mudar nossas personalidades. Pessoas que eram tímidas e reservadas, às vezes se tornam mais abertas, mais confiantes e decididas. Como essas situações pelas quais vocês passaram, moldaram de alguma forma as pessoas que vocês são hoje (Júnior e Dani)?

Nos quebraram. Quebraram a ideia de que podíamos dar um jeito em qualquer situação que viesse pela frente, quebraram a sensação de controle sobre nossas vidas e sobre a vida de nossas filhas, quebraram o apoio que tínhamos na qualificação profissional, quebraram a certeza de que um alto cargo de emprego nos sustentava. Quebraram a falsa segurança que tínhamos em nossos bens materiais.

Nos moldaram. Moldaram a forma como panejávamos o futuro moldou o nível de importância que dávamos a coisas e ocasiões, moldaram nossa forma de viver e conviver.

Nos transformaram. Transformaram como vivemos e como nos tratamos como família, transformaram como entregamos nossa vida a vontade de Cristo, transformaram como vivemos o cristianismo, transformaram nossos objetivos, transformaram o que esperamos da vida. Transformaram nossa fé em Jesus. “Antes eu te conhecia de ouvir falar, mas agora eu te vejo com meus próprios olhos”. – Jo 42:5.

Estamos em meio a grandes desafios por todo o mundo. Muitas famílias perderam suas rendas, padrão de vida e até perderam familiares e amigos devido a pandemia. Que mensagem vocês gostariam de deixar as pessoas nesse momento? O que elas não podem perder de vista?

Não se deve perder a fé no Deus vivo que não só faz promessas, mas que as cumpre; num Deus poderoso que ama fazer o melhor em nossas vidas, basta darmos lugar e liberdade para que Ele faça o que Ele quer; um Deus amoroso que é excelente em transformar o que está quebrado em algo lindo e novo.

Perseverar, lutar, moldar-se às situações e viver um dia de cada vez; ter a certeza de que nosso Deus passa conosco pelas adversidades e nunca nos abandona!

Sobretudo, viver consciente, esperançoso e certo de que desfrutaremos de dias sem dor, sem lágrimas, sem convulsões, sem frustações, sem sofrimento, sem saudades: quando estivermos na eternidade com Cristo! Aqui, estamos apenas de passagem, pois esse, certamente, não é nosso lar!

Pois Deus tanto amou o mundo que deu seu único filho, para que todo o que “NELE” crer não pereça, mas tenha a vida eterna” – Joao 3:16.

(Piquenique no Parque Canatara – junho de 2020 – Sarnia, Ontario.)

extraído: ENTREVISTA COM A FAMÍLIA SCARPIM ROSA | Revista Statto


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